Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

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7 days ago

O ruído assumiu uma preponderância de tal ordem que o seu ritmo se impõe como uma forma de coacção, uma moral que engole e, sem digerir nada, devolve tudo na forma de uma massa de detritos. Com todos esses juízos precipitados, tendenciosos, é raro darmos com um espírito lúcido, capaz de reservar uma relação de espanto e estranheza face ao mundo, repelindo a consciência comum. Quem se confronta realmente com a realidade e a julga pelos seus próprios meios, de acordo com a sua experiência e sensibilidade, acaba ilhado, vendo-se cercado de um imenso mar de ressaca, de toda essa civilização do cliché. Mesmo os artistas, até os escritores depressa se livram da sua diferença, deixam-se subornar. Se os lemos, se a vida deles nos sobe à boca, tem aquele gosto do vómito. Mais do que escrever grandes romances, poemas épicos, ensaios intermináveis e com vontade de abocanhar o mundo, seria necessário operar por meio de uma fantástica depuração, uma eliminação radical dos elementos degradados. “Vivemos num mundo onde há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”, nota Baudrillard. A maioria dos homens já nem dominam qualquer ofício, perderam até a capacidade de efabular, de contar histórias, de dominar a própria força e desejo, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical. Vemo-los revirar as bibliotecas em busca dessas partes íntimas dos mitos, procurando exumar pequenos detalhes, produzir ficções ingénuas e pífias formas monstruosas a partir de cadáveres que, na sua substância, permanecem intocados. Esta fórmula tornou-se um dos grandes desígnios de uma certa literatura que obtém o favor dos leitores, talvez porque lhes vende uma ideia de que o segredo que estamos a perseguir diria o suficiente. Há muito que se reconhece como a cotação da experiência baixou, abrindo caminho à desintegração da realidade, que, doravante, se adapta às imposturas que cada um carrega num esforço de adaptação a sociedades marcadas pela paranoia. Talvez por isso seja difícil encontrar aqueles que são capazes de converter a realidade que lhes é próxima, tão familiar, em algo que seja iluminador, e que possa escapar desse todo despropositado e que vai sendo salvo pela velocidade do naufrágio. Não deixa de ser curioso notar como nessas concisas fórmulas através das quais uma geração procurava passar à outra uma certa experiência, nos provérbios ou nos contos morais, tantas vezes o que exprimem parece um contrassenso, um desafio à lógica. Como se a autoridade que só chega com a idade o que nos conferisse fosse uma capacidade de estar apto a abandonar as nossas expectativas e ilusões de forma a acolher uma lição de vida. Há muito Benjamin questionava-se: “Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?”. Vivemos desolados numa realidade que já não responde a qualquer desejo, a qualquer hipótese por nós formulada e, no entanto, são aqueles que acusam todo este regime em que as ratazanas e a paranóia se impõem aos nossos antigos sonhos e propósitos, são esses que encontram maior resistência. Nos nossos dias, o crítico inspira ódio, porque a sua consciência fere esse enredo indulgente que tantos tecem para si mesmos. “Parece um fantasma no meio dos viventes porque é o único a interrogar a sua noite. Nessa interrogação solitária, que resume a sua vida, dá aos outros a possibilidade de ver, mas ver verdadeiramente. Não lho perdoam” (Ernesto Sampaio). No meio deste regime que nos devolve o mundo em ruínas e submerso nos seus próprios detritos, é urgente escapar desta atmosfera opressiva. Como sinalizava Don DeLillo, a nossa cultura parece estar reduzida a este ditame: “E vai tudo para a lixeira. Produzimos quantidades fabulosas de lixo, depois reagimos ao lixo, não apenas tecnologicamente, mas nas nossas emoções e raciocínios. Deixamos que o lixo nos molde. Deixamos que ele controle os nossos pensamentos.” Neste episódio, procurámos a companhia de um ilhéu, um açoriano nascido em Lisboa, um tipo que tem feito de tudo como escritor, como jornalista literário ou crítico. Nuno Costa Santos já não rejeita mas antes gosta de aparelhar essas naus precárias, jangadas com ânsias de outros mares, nesse esforço de partir à descoberta de uma linguagem cujos elementos não se comportem como restos de naufrágio à superfície de um mar morto.

Friday May 03, 2024

Essa coisada da literatura, onde é que isso já vai? Era para ter sido um extravagante ensaio geral entre os escombros da realidade, mas acabou como mais um antro para o recital dessas cansadas passagens obrigatórias, e o que nos escondem são esses exaltantes devaneios provocatórios, tudo é feito de forma a soterrar os melhores exemplos de um heroísmo indigesto. Passamos mal, cada vez pior, enquanto vivemos de castigo na sórdida intriga dessas réplicas medíocres, desses serviços de enciclopédia e de arrumação precária de alguns nomes nos balanços e panorâmicas da literatura portuguesa, sempre por ocasião de alguma efeméride, que logo deve sustentar o peso dessa canga. Estamos de tal forma contaminados pela técnica retrospectiva, que só damos mesmos pelos acontecimentos que rimam com o que já se deu, com a reprodução quase nos mesmos termos, como se tudo o que escapasse aos quadros de historicização já definidos devesse ser descartado como implausível. Parece que só o que está a dar, como assinalou Armando Silva Carvalho, é abocanhar a História… “A história da igreja, a história dos terramotos, a história das colónias, a história dos descobridores. Assaltam-se as bibliotecas, com sofreguidão, à cata de segredos, cabalas, diatribes. Toda essa patine seduz as cabeças devolutas e, é claro, não compromete nada nem ninguém.” Pois assim vamos, submergidos em ficções requentando os traumas do costume, como se tudo o que já passou devesse ressurgir, só nos restando dialogar com esse fantasma inexorável. E da poesia a ideia que se faz não é melhor, e continuamos entregues às excelências de um lirismo de obrigação, incapazes de definir outras coordenadas, alguma relação marcial com a época que nos coube, num regime de ataque e de defesa inextricavelmente ligados à expressão do ser vivo. Assim, nos sacudia Cesariny, notando como, “para qualquer lado exterior a nós que olhemos entramos numa zona que mesmo entre os mais novos está contente de ser puríssimo decalque de um momento anterior, um pensamento instalado na repetição (esta julgada muito boa para os efeitos da difusão)”. A questão hoje e sempre ainda deve ser colocado no sentido de perceber se somos capazes de reconhecer um inimigo. Os escritores, e os poetas em particular, vivem por aí nuns amuos, muitos satisfeitos consigo próprios, exigindo a paz para se entregarem ao seu suave degredo. Entretanto, aquilo que se escreve já nem deseja ser lido, dá os pontos, reclama a derrota cada vez mais cedo, não ensaia nem propõe nada, e admite-se até que a literatura está a ceder o lugar ao terror, às notícias sobre o terror, aos gravadores e às câmaras de filmar, aos rádios, a esse zumbido das notícias de catástrofes, umas sucedendo-se às outras, produzindo a única narrativa a que as pessoas reconhecem alguma validade. Há não muito tempo, Don DeLillo ainda teve a audácia de sugerir que há um curioso elo de ligação entre escritores e terroristas. “No Ocidente convertemo-nos em famosas efígies, ao passo que os nossos livros vão perdendo capacidade de dar forma ou de influenciar as pessoas (…). Em tempos acreditei que era possível a um romancista modificar a vida interior da cultura. Esse território, hoje em dia, foi tomado pelos pistoleiros e os fazedores de bombas. Conseguem arremeter contra a consciência dos homens. Isso que os escritores faziam antigamente, antes de terem sido comprados.” Aí está a consciência em termos bastante claros de um esvaziamento do papel do escritor, e, em muitos casos, até de uma certa renúncia a assumir qualquer acção no desconcerto das coisas. Por estes dias, os escritores refugiam-se nessas recriações do seu antigo prestígio, que servem apenas para uso interno, sem nenhum reflexo sério sequer ao nível da balança comercial. Bastam-se com a encenação desses miseráveis concursos de talentos aprovados sem distinção, mas apenas com o louvor que baste à difusão dentro do regime do espectáculo. Para deixar à porta não só as velhas ilusões como essas coroas de louro e a caixa de esmolas da boa consciência, neste episódio procurámos alargar o recreio de distúrbios batendo à porta da Academia, e Joana Matos Frias acedeu a vir falar connosco desse quadro geral da literatura portuguesa, que há muito parece ter ido abaixo, restando apenas uma espécie de culto à luz de velas, entre esses leitores que não se contentam com uma literatura que se cinge à mera transcrição de um mundo já conhecido, mas persistem nesse processo de descoberta das posições avançadas que não se limitam aos territórios do já vistoriado.

Friday Apr 26, 2024

Emergência, crise, desastre, colapso, extinção, palavras, palavras, palavras, o que podem elas fazer ainda se a violência maior reside precisamente nesse encadeamento azucrinante, nesse modo de alimentar um frenesi de cenários catastróficos sobressaltando-nos, instrumentalizando a indignação, até nos entregarem à indiferença e ao cinismo, de tal modo que é isso o que hoje transparece em todas as coisas, à medida que elas perdem a sua imagem, o seu espelho, o seu reflexo, a sua sombra, cada vez mais distantes da sua substância, incapazes de oferecer alguma resistência a essa tradução e aceleração impiedosa, arrastando-nos com elas nesse movimento implacável de contracção e de inércia. Baudrillard põe a hipótese de estarmos sujeitos ao mesmo movimento de expansão do universo, tal como as galáxias, presos num movimento definitivo que nos afasta uns dos outros a uma velocidade prodigiosa. O cenário de desastre e a sua pressão constante faz estremecer a trama da realidade a um ponto em que as coisas já não coincidem consigo mesmas... Sentimo-nos desfigurados face aos nossos reflexos. Como vincava Macedonio Fernandez, “as coisas podem chegar a um estado de descontrole maior do que elas próprias, ou seja, a um grau de alteração em que a sua existência acaba por ter menos valor do que uma existência zero, à medida que o efeito de substituição gera uma distorção de tal ordem que nos revela a sua tentação maléfica”. Por todo o lado é a descrença que assume peso, que impõe o seu signo sobre os quadros que melhor representam a época. Todo o efeito ameaçador, toda a consciência do horror que nos espera parece alimentar mais ainda essa força de inércia, uma imensa indiferença. O maior receio, aquilo que mais nos perturba, é a sensação de vivermos existências desprovidas de qualquer significado, estando submetidos a um efeito de desagregação que nos torna seres abjectos apesar das nossas melhores intenções. Parece ser mais actual do que nunca essa indagação de Pedro Oom, “Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?” O poeta desapareceu faz hoje meio século talvez por não ter reservado no seu organismo margem suficiente para uma retumbante alegria, absorvendo inteiramente essa Primavera magnífica que tomou conta das ruas, um poema demasiado intenso para que ele não embarcasse com todos os seus anjos e demónios, ele que, de tanto destilar o ódio que lhe merecia o reino cadaveroso, sucumbia assim de absoluta comoção. Ao que parece ainda por lá anda, escolheu essa Lisboa e o seu tão inebriante vislumbre de uma outra vida comp paraíso, e ficou ali com um riso esplendente à entrada do restaurante onde combinara almoçar com alguns dos seus companheiros de consciência e sufoco, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho... E se ele se encantava, só eles sabiam como tinha visto tudo o que queria, tinha ouvido aquela rima que o abalroou da vida, para não ter de engolir nem uma dessas pingas de merda que vão amachucando a nobilíssima visão que uns tantos tinham buscado. Neste episódio procuramos encontrar um ritmo que soe a uma contagem decrescente, no sentido de descongelar a história, recuperar uma perspectiva política, e até uma esperança na nossa capacidade de afectar o tempo, provocar uma necessária mudança de rumo. Pode ser que as palavras que usamos para despertar não queiram fazer outra coisa senão romper com esta sensação de luto entre nós e as palavras, entre as palavras e o mundo. Assim, e ao longo da muralha que habitamos prosseguimos esses exercícios de entoação, como quem anda à caça espreitando nos interstícios entre si e o mundo em busca dessas palavras nocturnas, palavras gemidos, palavras que nos sobem ilegíveis à boca, palavras nunca escritas, palavras inapropriáveis por parte desses empórios da redução do sentido e do alcance, palavras capazes de flanquear este absurdo em que nos fazem chafurdar. Para isso, para reconhecer e reclamar a ameaça existencial que paira sobre todos nós como uma espécie de juízo avassalador, para confrontarmos o desastre climático e as suas múltiplas repercussões, pedimos ajuda a Leonor Canadas, membro do Climáximo, e alguém que tem investido todo o seu tempo a desmontar os novos fascismos que emergiram nas últimas décadas e que nos vão levar a esse ponto a partir do qual mesmo o fim do mundo seria uma forma de clemência, quando o quadro que se desenha para este século é um inferno de tais proporções que fariam Dante queimar a pena.

Friday Apr 19, 2024

Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábitos, receando que um dia deixem de contar com eles para estas liturgias. Dado o imenso desprezo com que se olha hoje para a literatura, tendo esta sido reduzida a esse conteúdo processional, chamando a si essas actrizes que adoram representar o papel das viúvas inconsoláveis do espírito, há muito nos acomodámos a este registo piedoso, que não admite que aconteça algo de inesperado e que nos faça sentir que vai estar outra vez tudo em aberto, tudo ainda por dizer. A começar precisamente por essas coisas que de tão cultuadas há muito deixaram de ser levadas a sério. Foi precisamente o prestígio aquilo que deu cabo da literatura. Morreu dessas honrarias e desse chorume dessas que os foram envenenando para reclamarem os benefícios sociais e a pensão por viuvez. Houve um momento em que o escritor, ao sentir que a lepra do renome se lançava sobre ele e a sua obra, compreendeu que dificilmente se libertaria dessa dignidade imobilizadora, dessa sacralização sufocante, tornando-se uma instituição à medida que o regime o anexava, para poder ignorá-lo em boa consciência. Este processo coincidiu com o momento em que o poder percebeu que a melhor forma de industriar as consciências seria substituir a realidade pela ficção. Assim, como notava Ballard, se há cem anos, havia "uma distinção clara entre o mundo exterior do trabalho e da agricultura, do comércio e das relações sociais — que era real — e o mundo interior das suas mentes, devaneios e esperanças", hoje essa fronteira parece ter-se apagado, e a ficção e a realidade começaram a tornar-se indistinguíveis. A realidade que não se abatia face às crenças dos indivíduos, começou a ver-se distorcida, e o papel do escritor, que passava por inventar uma ficção que condensasse as várias experiências do mundo real, dramatizando-as de uma forma ficcional, passou a ser exercido sobretudo por propagandistas e publicitários. "As paisagens exteriores dos anos setenta são quase inteiramente fictícias, criadas pela publicidade, pelo consumismo de massas ... a política é gerida como publicidade", vinca Ballard, adiantando que isto levou a que o escritor ficasse desempregado, e as suas ficções foram-se tornando ilegíveis, uma vez que os leitores estavam agora acostumados a uma leitura bastante supérflua da própria realidade. Alguns, mais danados, ainda se reinventaram através de meios perigosos, como insultos, ventos que cercavam, sacudiam e esbofeteavam os seus leitores, aqueles resistentes que tinham a capacidade de enfrentar esses processos de denúncia e loucura. Hoje os grandes leitores são como loucos. E, como nos diz Gonçalo M. Tavares, a loucura é como uma pátria à parte, uma raça à parte... "Os loucos mexicanos falam fluentemente com os loucos russos, é tudo gente que se entende". Neste episódio, e no intuito de compreender o estado de decomposição actual do espaço literário, quisemos consultar este homem que dirige há muito esse gabinete de curiosidades, estudos avançados e investigações peculiares nesses bairros abandonados e velhos edifícios ou fábricas desactivadas onde alguns dizem ouvir ainda a imaginação a fazer das suas a altas horas. Em vez de nos vir com as tão comuns e estafadas rotinas desses leitores que se tomam por uma nobreza recolhidos nas setes quintas do espírito, a sua obra consegue ser instigante sobretudo nos momentos em que desenha e nos enreda em percursos de leitura bastante improváveis e audaciosos. Ele ainda é dos últimos que parece ter claro que "o estilo de um escritor não é o modo como ele penteia os cabelos enquanto escreve".

Friday Apr 12, 2024

A juventude devia importar-nos? E os jornais? Ou a falta dessas noções que iam abrindo caminho a uma renovação, a uma suspensão das velhas crenças e hábitos, dessa realidade que é usada como um argumento para vivermos sufocados? Talvez as respostas sejam o problema. Talvez as perguntas pudessem ser o suficiente. De tal modo impertinentes, umas atrás das outras, até que os que oferecem sempre as mesmas lérias vissem a sua convicção humilhada. Fazer perguntas para atazanar, para lhes dar cabo da paciência e, enfim, também do esquema. Tão seguros que estão atrás dos seus planos. A crueldade inventa sem parar, e muitas vezes encontra o caminho limitando-se a pressionar com a dúvida até deixar esta gente nervosa. Ao primeiro sinal de que as coisas não estão encaminhadas no sentido com que contavam, e largam tudo, desertam ou mudam de tendência. Como vincou Ivan Ilich, “o simples facto de uma pessoa redescobrir a surpresa pessoal, em vez de se fiar em valores produzidos pelas instituições, é susceptível de abalar a ordem estabelecida”. Entretanto, está dada uma volta em torno do sol desde que iniciámos este podcast, meia centena de episódios, um longo ensaio conspirativo, e assim temos consultado historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionários orto e heterodoxos, algumas mulheres em meias-noites especiais. Temos pesquisado desvãos, esses gestos fantásticos significando entendimento. Não sabemos exactamente do que se trata, senão que nos importa estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece. Também porque estamos claramente perdidos, andando em círculos, atafulhados em papéis e teorias. A nossa necessidade antes de tudo é uma necessidade de nós mesmos. Naturalmente, também temos recorrido a certa gente já bastante ferida pela Terra, e que, depois de convenientemente conduzida a esse transe meditativo, se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando ao longo deles horas, até o tempo se revelar essa ilusão que é. Não valeria a pena tentar resumir os melhores achados ou até certas baboseiras em que fomos recaindo, esses falsos rumos temporários ou os tantos desencontros, becos sem saída, investigações falhadas. Servimo-nos de todo o tipo de influências, agora mesmo, o Nuno Bragança vem-nos lembrar como já na Bíblia se fala em determinados anjos que iam pegar profetas, levando-os pelos cabelos a distantes sítios onde daniéis aflitos se rebolam com leões, interminavelmente. Trata-se de manter a conversa viva, dê por onde der, assim, e de tanto insistir, lá toma seu corpo um soltíssimo narrar, e nunca se é mais firme do que embalado por um sentimento de revolta, e, como assinalou Andrea Cavaletti em diálogo com Furio Jesi, “só no instante da revolta os homens vivem verdadeiramente em estado de vigília”. De resto, nesse “quotidiano regulamentado pelo trabalho e pelas pausas obrigatórias, estão sozinhos, cada um mergulhado no seu sono: o seu ‘tempo normal’ não é nada mais do que o produto de uma tecnicização contínua, o fruto da ‘manipulação burguesa do tempo’”. Acabaremos por construir alguma perspectiva ou uma nau de outra ordem, para se lançar num curso diferente? É difícil dizer. Talvez seja mais importante desfazer-se da fortaleza de si e confiar-se a algum companheirismo. Buscar gente, nascer uns com os outros numa misturação de respirar completo, afectando a mudança do presente noutras luzes íntimas de uma outra relação com o passado e com uma fome de um futuro para lá daquele que vem nos prospectos. Neste episódio, e nesse ensejo de encontrar pistas de ascensão à realidade, contámos com o apoio de Ricardo Cabral Fernandes, ainda em período de luto depois de ter sido obrigado a despedir-se da sua investida quixotesca, tendo criado uma plataforma "não-tradicional" de jornalismo como foi o Setenta e Quarto nos três anos da sua combativa existência. “Disse alguém que o homem subjectivo não podia tomar-se directamente a si mesmo, senão em relação à resistência que o mundo lhe oferece, senão em relação a essa resistência que ele encontra. E, assim, numa espécie de operação, de acção (Francis Ponge)”. Trata-se da Grande Obra que se exige a qualquer homem empenhado nos nossos dias, o de resgatar as possibilidades de construir sentido, de resgatar a matéria do mundo de todos esses insidiosos condicionamentos, dessa maldição desoladora que nos afasta uns dos outros.

Friday Apr 05, 2024

Na década de 1960, José Gomes Ferreira falava de "cerca de trezentas pessoas heróicas que andam de um lado para o outro, em Lisboa, a fingir cultura". Não estamos seguros sobre os números actuais, uma vez que se tornou bastante difícil realizar censos num tempo de tal modo desvitalizado, sem recreios, ringues ou arenas, e é, de resto, esse um dos aspectos que provocam mais frio, a sensação de não sabermos quantos somos, nem com o que contamos. E se não falta garganta aos actuais mestres de cerimónia, depois se nos deixamos levar e entramos por aquelas espeluncas a dentro é tudo demasiado confrangedor, acabamos por ver a noite desfeita e esparvoada diante de uns espectáculos de striptease em que os clientes às tantas pagam é para aquelas aberrações de feira vestirem qualquer coisa. Todos acusam a ausência disto e daquilo, e se se fala muito em jovens promessas, tarda em ouvir-se esse ronco instigante da magnífica fome nova. Mas como lembrava o Macaco, mesmo essa obsessão com o "novo" ("novos espaços", "novas formas", "novas linguagens") é acima de tudo um sintoma do desespero reinante, onde todos rezam pelo surgimento de um novo produto que se inscreva num registo alternativo ao do desastre em curso. Naturalmente, isto só abre margem para um tráfico de distracções. Quanto aos elementos de regeneração e aos gestos próprios da juventude, tudo isso parece ter-se eclipsado, depois dessa forma de condicionamento para trocar a vida por ambições e resumi-la com base em formas de subjugação consentida, andando todos embarcados nos delírios cretinizantes do empreendedorismo. Se antes os jovens detestavam o trabalho, e se entregavam a algum enredo perdulário, estimando os seus hábitos de renúncia e de tédio, que deixava a vista desimpedida de forma a reunirem essa "astronomia de imagens essenciais", de que falava Herberto Helder, hoje gostam muito de falar e de exprimir sentimentos estrondosos de forma a se isentarem de qualquer tipo de acção ou compromisso mais severo. Se antes olhavam para as mãos, com um desprendimento íntimo, vagaroso, quase sardónico, agora fazem contas, desenham soluções de investimento, estimam os juros que irão auferir seguindo este ou aquele plano de valorização pessoal. Num país cada vez mais condenado a si mesmo, as redes de competição dominam todos os aspectos da nossa existência, e aqueles que patrulham as zonas comuns do campus cultural "só se apertam para cumplicidades relezinhas", como vincava Maria Velho da Costa. "País onde tudo o que é comunal e fecundo é maldito. Terra que não aguenta expressas a raiva e a maldade que estão também em toda a criação conjunta. Canteirinho de sentimentos bons onde ninguém sabe gerir a violência senão pela paixão ou a ruptura. Onde cada um não aguenta a mesquinhez dos outros por demasiado terror da própria. Onde todo aquele que intervém a criar é melhor que todo aquele que intervém a criar e por isso só os que estão para conservar e destruir, esses, estão juntos." Vai ser preciso não um projecto de salvação, mas uma doença fabulosa, que reponha o sentido das coisas, algo como um "cancro novo em corpo de lepra lenta". Por agora, predomina a morbidez da vaidade, "a mesma ordem de matar de manso em tudo e todos", de abafar, de gerir um imenso pacto no sentido de silenciar quem quer que não se limite a este triste esquema de engodar a própria morte, fazer dela um patético número de cabaré. E se a universidade, como sempre, encolhe os ombros, à volta anda tudo desavindo, nuns perpétuos amuos que não dão margem a qualquer espécie de jogo. Este regime de castração química de todos os intervenientes que ofendam o protocolo e código cerimonioso, tem-nos a todos de castigo. Querem vir para a literatura como quem se tranca no quarto e não quer ouvir falar do mundo, e tremem sempre que algum rumor atravessa as paredes. Se Velho da Costa notava que antes se escrevia sobre o papel, do lado de fora do corpo, hoje tudo faz parte do corpo, e tomam a crítica por "body shaming". Escrevem como quem faz momices frente ao espelho, e só aceita reflexos ou ecos de ordem publicitária. Neste episódio, mandámos vir especialmente dos subúrbios nortenhos um espécime dessa raça praticamente extinta do jovem poeta que aperfeiçoou a letra, a paixão e a fúria copiando à vista os bestiais da tradição, pondo a admiração a uma boa distância do próprio ego, e aprendendo a cercar e dar caça à matéria que fala. Nuno dos Santos Sousa não vem nas listas, não entra nos greatest hits da parolagem, mas integra esse núcleo duro dos que gostam de estudar os passos morosos e ilegíveis dos nossos mais sinuosos perfis, num tempo em que ainda é com os fantasmas que se consegue manter uma conversa enquanto se deixa a noite trabalhar expondo os seus finais mais impiedosos. 

Friday Mar 29, 2024

Por cá, nas representações que fazemos de nós próprios, cedemos demasiado depressa ao registo da paródia mais alarve. É um modo de nos defendermos do nosso encanto, das primeiras e mais honestas ambições. Recosemo-nos no interior dessa carapaça desgostante, e assim nos vamos aliviando das exigências que chegámos a alimentar. Hoje, qualquer reflexão que se manifeste entre nós aparece antes de mais como paródia, e é muito difícil ir além dela. “As asas voltam a entrar no pássaro para o atar”, como escreveu Éluard. Seria preciso que o país aderisse, não aos regimes alfandegários e aos mercados comuns, mas ao surrealismo, perdendo o medo de nos surpreendermos, deixando de usar a moeda Bem-Mal, rejeitando corromper o ideal amoroso segundo o regime mesa-de-família-cama-de-casal. Deveríamos preferir o abuso a estes tristes usos que vamos dando à vida. Em vez de sufocarmos em intrigas de poder, mais valia que nos abandonássemos de vez à nossa propensão para a rebaldaria, reconhecendo como o acaso é uma força esplendorosa, e talvez então emergissem novamente impetuosos navegadores nesta tão desfalcada raça. Tudo o que pensamos, exprimimos e fazemos engrossa uma conspiração contra as nossas próprias aspirações, e era preciso assumir um desejo que nos ligasse à realidade, esta que por falta de empenho dos espíritos com alguma apetência lírica, simplesmente recusa a existência do poeta. Se nos tornámos muito hábeis em desenvolver essas debilidades que nos sirvam como justificação para não irmos além do que já somos, isso explica que, por agora, a nossa ainda seja só uma cultura que serve de desculpa. Não fazemos outra coisa senão pedir imensas desculpas por não estarmos à altura de algo mais. Lá nos vamos acolhendo e conformando com a estafada vidinha, a “videirunha à portuguesa”. E, se não deixámos de ser pobres, nunca sequer assumimos as nossas obrigações para com essa condição. Temos o rancor e o ressentimento, mas faltam-nos as forças que lhe são próprias. Como lembra Borges, “ser pobre implica uma posse mais imediata da realidade, um passar por cima do primeiro gosto áspero das coisas, conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo lhes chegasse já filtrado”. Como não nos livramos dos complexos e da vergonha da nossa realidade, só herdamos filtros, aderimos a esse patetismo degradante de quem se humilha a si mesmo, se escraviza a si próprio. Face a todo esse enredo, a nossa maior pobreza é mesmo o medo que temos de nós próprios, e uns dos outros. Em vez de nos reconhecermos e instigarmos, a nossa cultura apenas nos abafa e trucida. Em vez de retirarmos encorajamento da noção de que há muito por fazer, para nós não parece haver nada mais exasperante que o facto de nós podermos significar ou dizer seja o que for. Se não somos nada ou somos tão pouco, em vez de nos agarrarmos a isso, poderíamos aproveitar e aventurarmo-nos, sermos a frescura vindoura. Seria bom que abdicássemos dessa torpe etiqueta, da barafustação inconsequente, impedindo que o odor dos escombros se dissipe. Uma mulher feita para si mesma, um homem que correspondesse às suas próprias necessidades, isso seria algo que nos faria enfim ter vontade de sacudir as nossas vidas, e vesti-las com certo garbo. Talvez então pudéssemos acolher verdadeiros prodígios, livrarmo-nos dessa telenovela que sempre só tem ouvidos para a bisbilhotice que a todos nos rebaixa. Raramente temos dado a oportunidade uns aos outros para abrir a boca, ou segurar a caneta, não para vir com as bacocas frases do costume, mas para falar do que, em penetração, nos atrai ou comove. Somos assim relativamente mudos, e forçados a pagar multa sempre que assumimos um registo eloquente, sempre que levamos a vida à boca e a reproduzimos com um vigor fantasioso. Derrotados por essa miopia que nos serve de amparo e desculpa, recusamos o conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, mesmo que de longe em longe, com a poesia. Neste episódio, e com o centenário de Alexandre O’Neill a pairar sobre nós, pedimos ajuda à sua biógrafa, Maria Antónia Oliveira para nos ajudar a pisar esses óculos que muitas vezes servem menos para ver melhor do que para filtrar certas coisas. Ela que também está ansiosa por se despedir dessa forma de viuvez lançada em cima de quem quer que componha e trate da limpeza a seco para a posteridade de um fato de autor corroído pelas traças, vem falar-nos dessas outras assombrações que tem cultivado, num generoso esforço por traduzir em termos vitais um bando de personagens que nunca se quiseram mortas, e melhor ou pior, foram toureando essa e outras fatalidades.

Friday Mar 22, 2024

Uma ilustração adequada da condição mais comum dos nativos digitais seria uma perspectiva de campos a perder de vista dominados por uma espécie de plantação onde os corpos estivessem alojados em casulos, como larvas incapazes de completar a sua metamorfose, diluindo-se aos poucos numa espécie de banho amniótico, exercitando o seu suposto potencial através de uma infinita sucessão de projecções virtuais. Passeando por ali, ouvir-se-á uma toada ou murmúrio que vai de boca em boca, com variações subtis entre um perpétuo suspiro ou bocejo, entrecortados por alguns gemidos de deleite ou de frenético prazer. A sensação é a de estarmos numa imensa sala de um casino, mas sem música de fundo ou os ruídos das slot machines, apenas esse rumor contínuo, o de um longo processo de digestão. Vivemos no estômago da máquina, num conjunto de galerias infernais, fora do tempo, demasiado longe do mundo, processando estímulos cada vez mais rarefeitos. Num processo de respiração assistida, a nossa actividade psíquica é monitorizada, e nem se pode dizer que sonhamos. Integramos um imenso organismo que foi perdendo funções vitais, condenado a um processo de hibernação que nos aproxima de um estado vegetativo. Nos primeiros tempos de forçada inacção, e depois de azedarmos de impotência, a consciência só era capaz de produzir pesadelos. E a solução foi induzir quimicamente um sono superficial que não nos deixa mergulhar fundo o suficiente para dar largas ao inconsciente. Antes disto, estávamos sujeitos a permanentes crises de ansiedade, balançando entre os períodos em que nos sentíamos extenuadas, como gatas borralheiras de uma civilização decadente, e aqueles outros momentos de êxtase e aflição, como cinderelas escapando ao ouvir as badaladas da meia-noite. “As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,/ velam nossa carne como grifos educados”, de acordo com a visão de José Miguel Silva. O processo de transição acabou por não ser de ordem ecológica, mas de consciência. Por motivos de eficiência energética, a maior parte da população acolheu este quadro de hipnose. Não foi preciso simular nenhum processo democrático, pois desta vez realmente já não nos restavam alternativas. A civilização rendeu-se perante o seu próprio ultimato. Mas os intelectuais garantiam que a maioria nem daria pela diferença. O futuro seria como uma longa noite de sono. Como foi que o poeta nos retratou antes de tomar a pílula azul? “E o pior é que chamamos liberdade/ a um tapete que, rolante, já não ouve/ a opinião dos nossos pés; que nos leva/ para onde e anuímos, alheados,/ aos mecânicos desígnios do terror.// Respiramos cadeados, consumimos injustiça,/ damos duas várias voltas ao risonho torniquete/ que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça/ por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida/ sem tristeza nem remorso (Cinderela,// Varadero, off-shore) iluminam o cenário/ em que dormimos, inocentes como balas/ e nem sei como não somos mais felizes. (…) Neste cerco, viver é uma questão/ de prorrogar o desalento, de iludir/ o infortúnio: cerramos uma porta suicida,/ desatamos a gravata, ficamos satisfeitos/ quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.// Se olhamos para o chão desaparece/ o horizonte; se olhamos para o céu/ ficamos sós. Não percebo como rimos/ quando pedem que posemos para a foto/ de família. Alguém nos enganamos.// Confundidos pelo surto de mentira,/ leiloados pela última hipnose,/ enxertados no pedúnculo da morte,/ semi-envergonhados, de sorriso padecido,/ dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,// se esta alma como um campo pedregoso,/ se estes pés adaptados ao espinho,/ se isto que nós vemos é um homem” (José Miguel Silva). Para surpresa dos engenheiros do programa, nos momentos finais, em vez de lágrimas e terror, verificou-se que o termos sido obrigados a dizer adeus ao nosso modo de vida trouxe uma sensação de alívio, e até algum ânimo, pois o que quer que se seguisse pelo menos já seria outra coisa. Fartos da colmeia digital, exauridos por esse regime imparável, se não podíamos recuperar o mundo, mais valia abrir mão de toda essa linha de decepcionantes sucedâneos. Neste episódio, vamos ao fundo da última fase da evolução humana, induzida por essas conexões ininterruptas, por esse quadro de ajustamento mútuo com o ambiente mediático, num imenso e circular sistema nervoso que se limita a processar sequências infinitas e um tanto aleatórias de dados apenas para que a máquina possa aperfeiçoar o seu código. Para nos ajudar nesta descida aos círculos (ou circuitos) do inferno digital, Vania Baldi foi o nosso Virgílio.  

Friday Mar 15, 2024

Hoje tudo nos aparece escaqueirado pela palavra mais fraca, pelas noções mais frágeis, mas que se infiltram e servem como uma razão e um denominador comum para essa massa opaca dos monstros práticos. E se todos anseiam desesperadamente por vencer o impasse azucrinante em que vivemos, talvez hoje fosse politicamente mais relevante se congeminássemos um verdadeiro bloqueio, a construção deliberada de um impasse. Dan Fox, um escritor e músico nova-iorquino, sugere que se possa abrir espaço através de uma cuidadosa deflação temporal, uma vez que o mais difícil parece ser encontrar saídas. Talvez o mais urgente seja suspender a vertigem delirante em que estamos embalados, e então procurar uma solução de compromisso para organizarmos o nosso pessimismo. É um modo de desobediência e resistência, quase bartlebyano, uma recusa em ser produtivo, em acatar as instruções, e não reconhece uma diferença entre o descontentamento ou o mal-estar que se arruma à esquerda ou à direita. Em vez de oposições que sempre se anulam, talvez um acordo que nos ligue do lado da insolência, impertinência, descortesia, truculência, talvez enquanto seres que recusam as habituais tácticas, a moderação e a cautela, preferindo algo de intratável: "prefiro não o fazer". Uma letargia assumida ao ponto de se tornar um elemento claro de desafio, de recusa, ganhando expressão através de interrupções forçadas dos fluxos, seja do trânsito automóvel seja de outras formas de tráfego, e à cabeça desse esmagador enredo financeiro que aos poucos empurra a própria existência para as margens. Greves, boicotes generalizados, todas essas formas de obstrução que funcionariam como as barragens hidroeléctricas, uma forma de capturar as forças até que estas se definam e possam expressar uma vontade menos equívoca. Ainda no rescaldo das eleições do passado dia 10 de Março, mais do que vir para o teatrinho da perplexidade e da indignação da classe de sabujos que a elite mantém nas tarefas de representação do nosso quadro político, interessa-nos prosseguir a análise da extensão absurda do bem-estar cruel que foi promovido e é tão propalado como o nosso "modo de vida". Na verdade, passou há muito a ser um modo de devastação planetária, e em vez de vir com a língua transformada em fada para distrair e provocar cócegas no juízo de quem nos ouve, devemos mostrar como é o próprio ar do tempo aquilo que nos dilacera. A pós-verdade é esse quadro de relativismo para o qual já O'Neill apontava ao falar de um tempo detergente. Voltamo-nos para a cultura e a história no sentido de readquirir uma gramática e certas noções comparativas, e até para voltarmos a saber o que é um ser humano e a desistir de compreender a realidade apenas segundo um regime de semelhanças. No fundo, um bloqueio que exprimisse o mal-estar que hoje é o sentimento mais presente em toda a sociedade seria uma forma de sairmos desta submissão a um regime de eficácia e de aceleração que há muito nos ultrapassou, deixando de corresponder às nossas aspirações. "Participamos no mundo através da opinião, já não através de intervenções, acções e planeamentos", notava o designer Otl Aicher. "Todos vemos o estado deste mundo, todos sabemos que algo tem de ser feito. Mas só escrevemos apelos. Participamos com plena consciência no processo cujo fim é previsível, mas existe o perigo de não podermos fazer nada." Assim, se não é claro qual seja a alternativa, podemos pelo menos concordar que não é "isto", e que é preciso, por todos os meios ao nosso alcance, travar "isto". Por uma vez, é evidente que a destruição adquiriu um evidente elemento salvífico. Para nos ajudar a ler a recomposição do quadro político e dos resultados da passada noite eleitoral, pedimos ao Diogo Duarte, historiador que se tem dedicado a compreender os fulgurantes movimentos anarquistas que chegaram a ter grande peso entre nós, que voltasse a juntar-se a nós para fazermos um exercício de enquadramento e interpretação dos sinais de um ressentimento que deu uma inaudita expressão a um partido oportunista, e que tem sido o único a valer-se desta impotência crítica, criativa e construtiva que resulta da mercantilização radical de todas as esferas da nossa vida.

Friday Mar 08, 2024

É preciso saber andar pelo passado, alimentarmo-nos dele, e não como qualquer coisa morta, mas como matéria que é possível constelar com o presente, reinterpretar, sem repetir os mesmos gestos, caindo na prisão de um encanto mítico. Em tempos, a escrita e a leitura, sendo actividades vagarosas, reconheciam que a tarefa que se nos impunha era avançar para trás, na direcção da coisa desconhecida no interior da própria cultura. Era preciso saber perder o tempo em busca do tempo perdido, e valer-se de toda essa abandonada riqueza. Outros já souberam a palavra que te falta ou que ignoras, outros fizeram a seu tempo os gestos necessários. É preciso saber renunciar à engrenagem diabólica deste tempo, interromper-se, romper com um modelo de educação que passa por imitar até ao ridículo os gestos e a linguagem dos seus antecessores, deixando escapar o elemento transformador das suas acções e escolhas. É preciso renunciar também à nostalgia, uma vez que nela também se escondem o poder, a violência, as velhas hierarquias e valores repressivos. E, no entanto, há essa pequena luz bruxuleante, a das estrelas vencidas, há esses murmúrios distantes nos quais é possível beber outra instrução. É fácil deixar escapar o principal, pois a época impõe sempre o seu pânico, e vem-nos com falsas urgências, os seus índices. Talvez fosse melhor que surgisse de uma vez uma geração que se desse realmente conta de que não tem nada a perder, e essa estivesse por fim disposta a levar a sua consciência e convicções até às últimas consequências. Estamos necessitados de algum grau de radicalismo interior, de uma inquietação profunda diante do mundo, de forma a nos interessarmos pelo abismo deste tempo, pelos desafios próprios da época que nos corresponde. Se não falta por aí esse fácil pessimismo apocalíptico que permite a alguns maestros da retórica viverem em bicos de pés, sempre a conjecturarem cenários para acicatar as nossas inseguranças e medos, o que tem faltado é uma verdadeira vontade de perceber o que possa ser o fim do mundo. Como assinalava Eduardo Viveiros de Castro, pode ser que hoje estejamos a passar pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. "Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabámos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais." A pior forma de se confrontar com as coisas é achar que se conhece o problema, não chegar sequer a formular as perguntas, a enquadrar de forma correcta a crise que temos diante de nós. É preciso instigar a dúvida, e para isso, para aprofundar uma reflexão crítica sobre as questões da educação, neste episódio contámos com esse esforço peregrino de Jorge Ramos do Ó, historiador e professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Alguém que se tem batido para contrariar o regime de sufoco e todos os constrangimentos e as formatações que se colocam nos actuais modelos de ensino, e também de investigação e exploração no quadro académico, denunciando essas forças que tendem para a fixação de sentidos e para a progressiva rigidez dos modos de pensar.

© 2024 Enterrados no Jardim

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